A GENTE
GOSTAVA MUITO DO WINSTON CHURCHILL
São raros
aqueles que com o passar do tempo não se
multiplicam
para ocupar maior espaço dentro de eles mesmos antes do fim
para ocupar maior espaço dentro de eles mesmos antes do fim
.
Primeira parte:
Recostado num banco à beira-mar o maltratado tronco
sustentava a cabeça inclinada a fim de permitir aos olhos enxergar e reler,
ainda uma vez, o noticiário esportivo no jornal velho que o vento atirara a
seus pés, ou onde eles deveriam estar. Por ser recorrente, tanto a cena quanto
o cenário, o fato levava o lider deles a comentar com os demais, notícias do que
lia e daquilo que depreendia dos comentários que voltava a encontrar de novo e
ainda uma vez no jornal, desde o alto de sua carranca barbada.
- “Estou observando
aqui no periódico o exagero da mídia local no endeusamento de esportistas a
garantir fama e popularidade aos músculos, depreciando a capacidade intelectual
dos individuos que por decisões do
destino assim como do grande desastre que o acometera no fim da infância do
qual lhe restara as cicatrizes e entre membros, mantivera os braços intactos,
mas atrofiara as pernas além de perder pai, mãe e aconchego, tudo isso
estorricado nas chamas do incêndio implacável que lhe deixou como dolorida
herança a esperança, o isolamento, a dor e o abandono, num mundo distante,
ausente e deserto, onde lhe era imposta a sobrevivência.
E
prosseguia revivendo, com o olhar a se perder no mais fundo do horizonte, mas
não triste.
- “Para estudiosos, essencial é o saber da ciencia
a gerar dividendos, o que conta para as lideranças, é a grana como poder e este
em prepotência, pois, não sendo assim, não se sustenta! Do jeito que estamos
indo a humanidade vai muito é mal, você não acha?...” repetia a perguntar.
O membro à direita do tronco escutou o comentário e respondeu
de forma “magisterial” como gostava
de fazer, conquanto se referisse a ele e não ao conjunto, pois não falava pelo
corpo inteiro:
- “Poucas vezes você acerta uma e desta vez,
bateu, meu camarada! É isso ai! Hoje em dia qualquer criança cita o nome de
vinte personagens que as rádios ou os jornais tornaram personalidade num
estardalhaço. E isso pode ocorrer em razão de um átimo de lucidez num pulo ou
num drible, numa rasteira ou num toque, num tique ou num chute, num gool ou
numa ginga, num blefe ou na sorte. São raras, porém, as pessoas que reverenciam
a palavra ou a sintaxe, uma rima ou de como, onde e quando lançar mão do advérbio
sem a utilização de adjetivos para superar recordes e conquistar medalhas. Se
versos, cujos paladares são cultivados especialmente para a fina degustação e
ainda assim raramente são saboreados por leitores regulares, mais ignorados hão
de ser as pensatas, que falam das histórias distantes, histórias ou memórias”. E
concluia:
- “Afinal,
quem mais vai querer saber da realidade implacável, por exemplo? ”
Tinha prazer em completar comentários
deixando questões órfãs, a afirmar didático:
-“Nunca
haveria de ser meu discurso uma aula,
e nem minha intenção magisterial”.
Desejava apenas tornar claro que se mantinha atento e,
participando do processo, apreciava criar enigmas para deixá-los soltos nas
trilhas como armadilhas quânticas para aprisionar as últimas irrealidades ainda
livres entre as verdades da selva universal.
TRAUMATIZADOS E RESSENTIDOS, SÓ SE FALARAM APÓS A
ADOLESCÊNCIA
Desde os primeiros instantes se mantiveram lado a lado.
Lembrava-se disso quando as diferentes razões começaram a se ajustar em seus
entendimentos. Depois que tomara consciência de suas vontades, o tronco jamais
se preocupara em disfarçar sua preferência pelo membro a completar-lhe o lado
direito. Enquanto se relacionavam no dia-a-dia, o parceiro ao avesso observava
discreto desde o lado oposto, aquela convivência mal equilibrada. Retraído por
natureza e com a emoção a lhe provocar gagueira, onde escondiam-se suas maiores
fraquezas, as inconvenientes provocações do outro:
- “Afinal, só contamos com um único braço
direito vidafora e há que cevá-lo bem”.
Disfarçando,
como era de hábito, assim o esquerdo também se comprometia a ouvir o que o
direito repetia frequente, porém de forma abusada, referindo-se a si próprio e
tornando a reação inoportuna. - Já
que é assim, deverá ser para mim as honrarias, e para as esquerdas as
estropias!
Inventava expressões em busca de rimas a fim de provocar aos
que se surpreendiam com sua falsa erudição. Tinha por fim manter a submissão
entre súditos e subalternos, onde coubessem ambos.
Eram aqueles hábitos, costumes e valores que ele mais
apreciava na “English way of life”,
alvo de sua permanente admiração. Assim, destacava as heranças comportamentais
britânicos a deixar claro, sempre que surgia ocasião para expor o apreço
declarado por eles, seus sonhos, desejos e vontades.
Nas primeiras vezes que usou a ironia em defesa da nobreza
inglesa, surpreendeu-se e o sucesso social da irreverência foi tal a se tornar
marca pessoal. Mantinha o suspense, pois suas declarações incomodavam ao tronco
a resvalar no esquerdo que, na moita, aguardava o soprar dos ventos.
Tal qual outros tantos, ele desconhecia quem deles
estaria no lado oposto.
Os primeiros contatos entre eles ocorreram quando contavam
mais de vinte e menos de trinta aniversários e lá prosseguiam, a desembarcar da
adolescência no rumo da maturidade.
Até aqueles tempos apenas a sobrevivência ocupava o horizonte
das preocupações e eles se completavam sem saber que poderiam ser entidades
autônomas a conviver em seus destinos.
Sempre sorrateiro, jeitão de que só se aperceberiam mais
adiante, o direito agia de modo a levantar suspeitas sobre as perspectivas
futuras da mini comunidade que se firmava a congrega-los.
ALI
ESTAVA, POR FIM, O BOM CENÁRIO PARA A FESTA DE CANTAR PARABÉNS.
A lua reinava no céu e a hora de comemorar o aniversário
estava chegando. O tronco prelibava os momentos em manso silencio a observar
sua sombra projetada no cimento encardido da calçada.
Estava acocorado sobre os tocos de pernas que lhe restaram
depois que o incêndio lhe consumira parte delas e observava o cenário à sua
volta, examinando desde o meio-fio, junto ao poste elétrico de onde vinha o
brilho nascido na lâmpada que definia o limite da luz para a cegueira e a razão
terminava por rebater no início da escuridão. A claridade emanada fazia chegar
luz até o bueiro ao seu lado, um retângulo de ferro fundido vazado em barras
iguais e enegrecidas pela sujeira, por onde escoava a imundice que a chuva do
entardecer carregara.
“Seria
ali a saída? A garganta funda do mundo?” olhava o bueiro a suspeitar
assustado.
De onde estavam os olhos dele, observava mais além as bordas
da boca de lobo e lá as baratas milenares aos milhares, ocupavam ageis o gradil
do sumidouro no frenético festim das noites quentes do verão, num entra-e-sai
encapelado.
Enquanto isso a vizinhança à sua volta regurgitava em meio a lama e o
lixo.
Entre lacraias e vermes a ratazana corria sorrateira e
assustada, esquivando-se ao longo da sarjeta para desaparecer
em novo ralo mais adiante.
E o tronco se mantinha indiferente à paisagem daquele
mundinho perverso.
De cócoras com a bunda torta roçando no chão equilibrava-se
na planta de tocos dos pés a calçar tamancos de madeira e apoiando os joelhos
nos sovacos. A sobrevivência parecia uma loucura a lhe ameaçar incessante.
Acariciava os pelos da barba com as pontas dos cascos a alongar-lhe os dedos em
forma de unhas com luto.
Ao
tempo em que administrava tal indigência, refreava uma fome avarenta.
Foi na miséria daquela noite festiva e morna que, pela
primeira vez ouviu, sem perceber de onde vinha ou aonde nascia, o som peculiar
da voz do direito a chegar-lhe, não sabia como e nem de onde vinha, como se
fosse um balão pontilhado de história em quadrinhos vindo de tempos antes, a
desaparecer na quebrada da página da publicação.
- “Esta barba não lhe cai bem. Embora sua
aparência seja naturalmente ásnica e a epiderme maltratada, ainda assim, o
monte de pelos espalhados cara afora não lhe vai bem, companheiro”...
- “Você diz isso porque não pode ter uma barba
ruiva e nem qualquer outra...”
-“De
que me serviria uma barba assim, indaporcima com essa cor esdruxula? De mais a mais, vá lá que comemoremos juntos
nossos aniversários, mas minha pele não está tão detonada quanto a sua, que
necessite escondê-la sob um monte de pelame sujo e mal tratado. Por falar
nisso; parabéns a “nossotros por nuestros cumpleaños”, cierto?” Prosseguiu
e disse. -“Nem eu nem mais nada neste seu
corpanzil decadente está revestido por epiderme tão injuriada pelo tempo ou
pelas ferradas da vida, quanto a pele que lhe cobre a caveira”. Afirmava com a voz carregada de barítono free
lance na busca de expressões para ofender sutil e maldosamente.
- “Esse pretendido sarcasmo confirma sua inveja”. Respondia o tronco de volta para ele.
-“O parceiro ai do lado esquerdo, que dissimula temor em sua mudez,
amuado e gauche de nascença, é de fato sutil e ardiloso, por isso concorda com
tudo o que decido pelos membros dessa agremiação recreativa e restauradora de
nós três. Melhor mudar os hábitos do que continuar cultivando hesitações dentro
da manga do casaco ou no fundo do bolso, que mesmo sem ser o refúgio ideal,
estava ali para guardar esquisitices em forma de clipes, fósforos, cigarros,
bleesters, arrependimento, meditação, culpa, canivetes, purgação mais
recolhimento entre outros lamentáveis e velhos ressentimentos”.
Pontuava o direito a seguir reduzindo o volume da voz, mas
para que a ouvissem sussurrada, precisava estar seguro de que o outro ele,
aquele a estibordo, escutasse suas provocações e decisões.
O TRIO E A METRALHA NO OUTRO LADO DO OCEANO
Foi durante a segunda
grande guerra que o membro à direita deu nome aos seus pares e a si mesmo.
Tomara a iniciativa a fim de que as partes inferiores mutiladas tivessem mais
um motivo para se identificarem e integrarem-se - assim como ele - com cada um
dos outros membros do grupo, de forma espontânea, no dia-a-dia e também através
da história daqueles tempos duros que viviam. Por semanas se dedicara a lhes
explicar atencioso os benefícios, as utilidades e a necessidade de ser quem
eram e quem em verdade sempre haveriam de ser, mesmo com os paises baixo mutilados, levando, cada um
deles, sua própria identificação: O primeiro é fino quase transparente e se
percebe a luz através dele. O outro não se sustenta nem mesmo deitado,
aceitando e conformando-se com suas impossibilidades e limitações insuperáveis,
nas primeiras leituras que se faça delas.
Ocorreu nas docas, lá aonde encontraram o caixotão
vazio num canto do cais.
Instalaram-se num recôndito do porto semi-abandonado. O
tronco, o direito e o esquerdo, num espaço a servir como sala de estar da nova
habitação. Essa começava ali, no que restou da embalagem grande, a se completar
com o mundo a volta deles. Estrutura feita em madeira boa à altura média de um
homem normal e com pernas. O que havia restado dela, violada ali mesmo e sem um
dos lados pelo qual suas víceras
haviam sido retiradas, serviria agora de abrigo para os três familiares. Mesmo
ficando sem o teto e sem uma das laterais, a compensação viria pela paisagem
que se descortinava e se abria sobre uma das faces por onde entrava a brisa
fresca do oceano vinda dos confins do horizonte. Os lados restantes do caixotão
protegiam os invasores dos olhares bisbilhoteiros do mundo inquisidor à volta
deles. Por ali ficaram perto de um mês, até que certo dia ausentes, a vivenda
clandestina com paisagem a perder de vista sobre o oceano, foi atirada às ondas
e se escangalhou rebatendo na encosta da murada de pedras do velho cais, no
ir-e-vir constante do mar.
Meses antes do fato, em tarde quente e úmida, os três
apreciavam o marulhar, enquanto o tronco devorava um naco de bacalhau que o
direito surrupiara do que restara nas caixas dos esquecidos armazéns. Com a ponta da língua o tronco identificava as partes
menos ardidas do repasto e com o rabo do olho ia lendo as notícias no jornal
antigo, já amarelado e atirado ao chão malcuidado do deck, a mastigar os nacos
com forte gosto marinho, salgando o cuspe.
- “Dizem que os ingleses estão agüentando um
fogo cerrado lá na ilha deles nessa guerra que travam os bávaros contra o resto
da humanidade”, discursava a degustar o sabor acre do peixe ressecado,
deixando o olhar revezar entre as folhas do jornal e o infinito. Procurava lá
longe, o que poderia ter restado da fumaceira provocada pelas chamas dos bombardeios
que, segundo o noticiário, destruíam a heróica e milenar Albion oculta além da
linha do horizonte.
- “Toda comunidade deve levar trancos “vezemquando”,
para si redespertar e reafirmar para todos, além de para si mesma, seus
sentimentos, desejos, vontades e expectativas”.
Ponderava
profético como se estivesse num parlatório, o membro direito.
- “A nação inglesa já teve oportunidade de
mostrar ao mundo e a ela mesma, até onde chega o testemunho da crença cívica,
coisa que eles têm demaisdaconta! Às vezes beirando a bobice.”
De vezes não dizia exato o que lia. Deixava-se discursando a reinventar
de improviso e convicto o que lhe
ocorria, tirando as sabedorias recolhidas antes do destino fazer dele o
trapilho no que restou:
-“Aquela ilha não será nunca ocupada por outro
povo senão o britânico”.
Concluía sempre com empenho em recorrentes alocuções. Daquela
vez como de outras, quando a lida inglesa ou a nobreza dos Kent, Tudor, York, Windsor e
seus compartes surgiam como temas
para os bate-papos onde quer que estivessem, ele tomava a frente com sua
eloquência, levando ideias e tratos elegantes oferecidos aos personagens. Mesmo
que fosse raro, se deixava atento a intervir e contornar temas que ensejassem
comentários inconvenientes sobre seus apreciados britânicos e por outro lado,
tinha gosto em estimular comentários favoráveis ao english
way of do and be”.
-“O mundo deve permanecer atento à Inglaterra, modelo
para a humanidade! ” E seguia:
- “Alguns milhares de ingleses” - Gesticulava
enérgico a concluir - “...estavam
resistindo a inimigo mais poderoso e melhor preparado para conquistar objetivos
na ilha do que os finos colonialistas afortunados e acomodados ilhéus, a
defenderem seus domínios nos Arquipélagos de São George”.
Comentava repetindo o jornal e prosseguia observando a
história pois que o santo protetor do reino havia providenciado
para a casa de Windsor a liderança fiel de um lorde com poderosa garganta, uma
vez, que para este fim, o rei não se prestava. Fazia-o irônicamente grave o
primeiro ministro, através os poderosos microfones internacionais da potente e
insuperável BBC, para que todos no planeta ouvissem e, iguais a ele, também se
inflamassem.
- “Era do lorde inglês e do uso a ser dado às
suas palavras, a convocação que resgatava a coragem demonstrada pelos bravos
guerreiros britânicos de todos os tempos e cantos do Império em guerra, d’onde
quer que chegassem seus patrióticos apelos, pois, era crença dele, que clamava
em nome da humanidade de então e pelos mesmos justos princípios, mas não
necessariamente os mesmos fins.
Perguntava a ler ainda o jornal, até onde aqueles que
discordavam de Buckingham, entendiam o Lord? E por conta disso ajustavam-se ao
que ouviam e com o que lhes dizia o nobre sir Winston Leonard Spencer Churchill.
Reproduziam fieis mundo afora, todas as broadcasts - que eram poucas - e os
maiores jornais de língua inglesa. Estes, seguidos por grandes e pequenos
veículos do planeta acidental, servil e assustado frente o tradicional poder
constituído a se sentir ameaçado.
Comentava sua liberdade de traduzir em falação o que
lia no jornal envelhecido.
“-O
primeiro ministro Winston tinha como finalidade em seus pronunciamentos,
indicar aos homens o caminho mais adequado - segundo os interesses do reino -
para vencer a guerra e gerenciar a riqueza humana, pois lidava com guerra visando
paz, tal era sua fé. Naquela circunstância cidadãos do ocidente planetario,
gregos e troianos, se sentiam convocados pelo lorde a traduzir as emoções da
comunidade global assustada, em meio à lida com ideais exóticos e com a
ausência da coragem.
- “Fenomeno que ocorria para enfraquecer ainda mais, os
já fragilizados”, repetia o direito.
Declamava bem alto o direito, repetindo como papagaio, ideias e palavras que seguia
lendo no jornal encardido, e que embora traduzidas por desconhecidos, eram
atribuídas ao Lord Winston Leonard Spencer Churchill, enquanto o braço nu se
agitava no ar como se fosse uma batuta a reger Mozart.
Falava também, pretendendo fazer saber ao mundo, que se
comovia e por isso concordava com tudo o que afirmava o líder, avançando rotas
e ideologias, frente ao planeta acuado por teorias satânicas.
SATISFAÇÃO E PRAZER EM ME CONHECER
Reduziu sua empolgação anglo saxônica mudando o tom ainda
naquela mesma tarde à beira mar, e mantendo idêntica atitude, observou atento
aos que estavam presentes, entre seus pares:
-“... Com
a idade a que chego, considerou em voz alta e empostada, já é tempo deme fazer conhecido através de
uma identidade única e como de resto, todos à nossa volta. Cabe-nos uma identificação que seja a imagem
e influxo de cada um de nós, não mais apenas uma especificação técnica da parte
de uma unidade humana. Tenho pensado
muito sobre isso” - falava - “e por
conta do cismar decidi que a partir de agora nós vamos nos individualizar
através de identidades com nomes ocidentais!”
Dizendo, tomava medidas para dar início ao batizado geral,
amplo, assim como irrestrito e em seco, de todos a compor a pleiede
fraternofamiliar que se completava.
Sem esperar instante sequer ou mesmo sem
aguardar por dúvidas alheias, prosseguiu o ritual:
Os inquietos e defasados suportes do conjunto que formamos, a
cabeça, o tronco e os membros, vieram ao mundo preparados mas o destino não
aprovou a ideia que hoje, aleijada não vai bem das pernas. O primeiro dos membros, o mais magro e quase
transparente recebe o nome de ‘Malacaxeta”, mineral popular nas terras de onde
ele veio e o segundo, mais desengonçado será chamado pelo justo nome de
Estrupício por ser atrofiado de alto a baixo, como se fora um trombone
desmontado. - “O aquietado camarada do
lado oposto será identificado por nome honrado. Ha de se notabilizar sendo
chamado por François Julian Marie dos Anjos de Robespierre ou mais
simplismente: Robespieeerrr; Esclareceu afetado para entendimento dos íntimos.
Faço dessa decisão, pois, uma reverência ao herói francês, guilhotinado por
falta do bom senso e excesso de pescoço.
-“Coisa de
pacóvios”, como diria um velho amigo dele, um certo monsieur
Marat...
Enfatizou olhando com irônia e arrogância britânica,
dirigindo então, sua fala para o suporte da dupla:
- “A ti, chamaremos pelo substantivo nome, com o
qual já o identificamos na prática. Continuaremos a tratá-lo, pois, por Dorso.
Dorso dos Anjos, numa gentil referência a reafirmar afetos. Finalizando, por
essas e outras razões insisto e peço aos que me ouvem, de que, daqui para diante
me identifiquem por meu nome cristão ocidental, real, justo, útil e específico.
O que passarei a responder, qual seja;
“Minha identidade passa ser Winston Leonard Spencer dos Anjos
Churchill-II”, mas podem me chamar apenas pelo primeiro nome, Winston. Ao me
batizar cristamente, justifico essa homenagem, em meio a luta do bem contra o
mal no arquipélago de São George e no planeta à volta dele.
Respirou fundo e prosseguiu. -“Daqui para frente tomarei essa
identidade e perspectiva como divisa nos embates em que me envolverei em favor
da instalação universal dos padrões anglo-saxônicos de arrogância, traição e
sobrevivência, na busca pela pura convivência padrão britânico entre homens,
mulheres e quaisquer outros seres vivos e carentes de proteção, portanto,
carentes de se relacionarem entre os seus, rumando planetafora”.
Mudando o gesto, tom e ritmo, mas, mantendo a mesma melodia,
continuou:
-“Nós, Robespierre e eu, haveremos de ser a
guarda atenta, voltada para a defesa da integridade física e no empenho de
proporcionar extensa e tranqüila sobrevivência a nosso amado e admirado
suporte”. Concluiu como se a honraria fosse um juramento cívico e no
percurso que fez ao longo do gesto floreado de retornar ao bolso, rispou a
ponta da unha suja na barba cerrada e ruiva que cobria o maxilar do tronco, a
fim de concluir àquele blábláblá loroteiro e sem sentido em que se alongavam.
Fim do início de:
A gente gostava do
Winston Churchill.
Início do fim de:
A gente gostava do Winston Churchill-II
DE REPENTE
UMA PARTE DE ELE A FLUTUAR
Era frequente, ao se recolher no fim do dia
Winston informar a voz alta e perguntar:
“-Esta
noite vou estar com Napoleão Bonaparte, vão querer algo de, ou para o
comandante? ”
Da mesma forma, quase dormindo, era recorrente Robespierre
responder enfadado, a costumeira oferta que o direito fazia e respondia parodiando
o general em desrespeitosa amabilidade:
“-Diga,
pois ao comandante, que o Cambronne mandou ele à “la merde”! ”
Numa daquelas noitadas, quando dormiam na reentrância de uma
ponte em arco no Rio, durante o sono à luz da lua, o Dorso abriu os olhos e não
sentiu a presença do Winston. Procurou dentro da manga do paletó, mas ele se
escafedera, deixando-o invocado.
Perguntou-se,
pois, será que ele teria ido, ao fim, encontrar-se com o comandante
Bonaparte?
O tronco nem sabia que era possível ao direito sair dali onde
sempre o vira e, segundo seus habilitados sistemas funcionais, sempre estivera.
Chegou a imaginar que ele, de fato, havia se mandado, cansado que estaria da
existência indigna e miserável com a qual, aos poucos se habituavam.
Sobreviver não estava fácil e com o correr dos dias,
conviver, ficava mais complicado ainda.
A solução seria acelerar o processo de
resistência e consumir a vida cada dia um pouco mais do que o necessário, a fim
de esgotar breve o estoque, como nas horas extras dos operários, porém, ao
avesso, acelerando o processo de dissipação dos minutos, dos dias, das semanas,
dos meses e anos. Ou agindo atento, para consumir o estoque regulador de
sobrevivência acima da cota prevista para o periodo, sem recuperar o principal,
precipitando os procedimentos para chegar a termo o mais rapidamente possível.
Quem sabe, até mesmo antecipando a hora de as reservas se esgotarem, levando o
fim a acontecer antes ainda do que estivesse previsto.
A
solução não agradava, sequer interessava e por conta da frente ou do verso, não
se convenceu.
Ao acomodar-se na noite de sono, no girar do corpo encurvado
sob o arco apertado da ponte, o Dorso perdeu o equilibrio tentando se apoiar no
toco de perna a lhe restar e sentiu que o direito não estava onde deveria estar
àquela hora quase se precipitando. Robespierre, por outro lado, dormia
tranqüilo e o dorso ficou agastado com a idéia de que outra vez o direito os
abandonara ou, como ele mesmo havia dito, teria ido estar com Napoleão.
Constatou a dúvida e depois de algum tempo, voltou a dormir novamente,
retornando para dentro dele mesmo. Comprometeu-se, porém, que na manhã
seguinte, de forma adequada, faria saber da partida dfinitiva de Winston ao
oposto, pretenso abandonado.
Como se nada de especial ocorresse, acomodou-se sob os
jornais para voltar a dormir alheio em seu canto úmido sob o arco diminuto da
ponte.
A
MANHÃ QUE RESSURGIU DAQUELA NOITE
Foi o susto de um puxão nos cabelos que o acordou com os
primeiros raios de sol e ficou ainda mais surpreso ao constatar, que quem o
ameaçava com escalpo era o irreverente Churchill-II que não partira conforme
havia sonhado ou imaginado, ao contrário. Estava ali, junto com o resto deles
no nicho sob a ponte arqueada.
-
“Já é hora de acordar, vagabundo! Estamos com fome e você dorme como se não
tivesse nada a ver com isso, vamoslá, tánahora camarada, acorda!”
Ali estava ele agarrado aos pelos do Dorso a puxa-los firme,
porém com carinho e o propósito de acordar o dorminhoco. Já que estavam
novamente reunidos e tudo corria normal, achou por bem nem mesmo comentar o
ocorrido, que por um instante o assustara, pois talvez tivesse sido mesmo um
sonho. E lá se foram a catar de que comer e matar as fomes a fim de voltar à
quimera cada vez mais presente e necessária na vida molambenta que levavam, o
perneta de braços longos, meia canela e seus cotocos.
NO
DORSO COMO NO NINHO
Numa das madrugadas se assustou com o vazio deixado por
Winston e, noutras manhãs reencontrou o direito onde devia estar. Nunca
comentou com ninguém, sobre as escapadas noturnas também não perguntou,
convivia quieto e nem dava pala de
estar convencido de ser aquele o caso. E qualquer que fosse, inacontecera,
inexistira. Preferiu, pois - naquela ocasião -, estancar a inquisição.
Das
curtas fugas em meio às madrugadas, nada nelas afetava as vidas deles.
Tudo continuava como antes, exceto porque ampliava-se o
elenco de perguntas órfãs. O Dorso não queria levantar novas questões. As tinha
em abundância e não desejava interferir na liberdade de seu braço direito. Se
alguém deveria abordar a questão, este seria o próprio Winston e não o Dorso,
muito menos Robespierre, alheio em sua posição à esquerda.
Nada
se falara sobre as fugas noturnas. Nem um comentário sequer.
Sempre existira respeito pela liberdade um do outro entre
eles, desde que preservados limites e deveres, como repetia recorrentemente, igual
a um sherife de faroeste Winston, preservando as intimidades.
Embora em permanente conflito, compunham uma pleiede em
harmonia e entre eles prevalecia o costume de valorizar a experimentação, ao interpretar
autoridade como se fazia antigamente.
Na
posição em que o Dorso se colocava, o princípio representava um privilégio a favorcê-lo.
Era o tronco, que apesar dos defeitos na coluna, controlava a
liberdade de ir e vir no conjunto de sua micro-sociedade, dele e de suas impossibilitadas
ubiquidades.
De certa feita, enquanto dormia e já lá ia madrugada adentro,
súbito desconfiou da ausência do braço direito ainda uma vez. O dorso resolveu
ficar acordado até que aquele lhe voltasse ao tronco. Não sentira nada quando
da partida dele e queria agora conferir mais atento a engenharia de atracagem. Fechou os olhos como se
dormisse, mas mantinha-se alerta de fato a tentar pressentir também os
movimentos em sua volta através a visão da fresta horizontal espremida entre as
pálpebras.
Pouco antes de raiar o sol, notou flutuando sobre as cores da
manhãzinha a sombra do que poderia ser um óvni ou um urubu madrugadeiro
pairando como se leve corrente de ar ascendente o sustentasse. Incógnito
indivíduo alado luzia sobre o céu anil e lá refletia uma nesga de luz a rebater
em sua “plumagem” fazendo-o acender,
brilhando como se fora a lâmpada ao avesso cercada de escuro, igual a alvorada
de Magritte, vista de dentro para fora. Assim como no vôo da nave, em
movimentos calmos conduzia ao destino a missão sem distender asas ou girar
hélices. Silêncio e lá vinha ele se aproximando, flutuava o braço nu trazendo
na mão mais um pacote. Encomenda da padaria para o desjejum talvez, pois
lembrava o formato de uma bisnaga embrulhada e amarrada com frágil barbante
de algodão a lhe dar voltas. Achegou-se cuidadoso para aninhar-se ao lado do
Dorso e aos poucos deslizava para dentro da manga do casaco - sem se apoiar em
nada - a reencontrar espaço familiar. Conhecia as nuances do trajeto e por meio
de manobras delicadas integrou-se até o corpo se recompor por inteiro, cabeça,
tronco e membro superior direito. Por fim sua extremidade oposta e cheia de
dedos se recolheu ao fundo do bolso escuro levando consigo o volume e
aquietando-se para adormecer enquanto peles, músculos, nervos e ossos se
ajuntavam sem dor e em silêncio observava o barbado tronco esquecido entre as
partes.
AQUELES
ERAM TEMPOS DE FANTASIAS:
Numa manhã de fevereiro, véspera de carnaval, destendiam-se
nas areias de Copacabana e, ar espantado no trejeito de eterno folião, Winston
alertou a todos:
- “Vamos
já nos preparar para assistirmos aos desfiles das escolas na avenida! ”
Conclamava dispondo-se a seguir para as arquibancadas aonde
ocorreriam as festividades de carnaval e onde se instalavam os amplos
corredores, local de blocos, das escolas de samba e ranchos a desfilarem, para
grande platéia comemorar e dançar ao ritmo de marchas rancho a entoar os temas.
-“É
hora de reservar assento no desfile das escolas de samba, vamos lá! ”
Enquanto ouvia a convocação do oposto, Robespierre fazia
gestos para o tronco que, desentendendo, guardava as dúvidas atento ao diálogo
ocorrido a seguir entre os parceiros:
- “Onde você conseguiu esse relógio de pulso no
qual pode ver que hora é essa? ”
Perguntou
Robespierre a Winston com o Dorso atento à conversação.
- “Achei”. Respondeu cordato, atento e
direto o direito. “Encontrei quando fomos
passear no Jardim Botânico. Estava esquecido junto ao tronco de um jacarandá,
bem na sombra onde nos sentamos. Fui tão discreto que ninguém percebeu nada, éounum-é?”
Concluiu tentando, de forma “simpaticida” conquistar a cumplicidade de ambos na mentira óbvia.
Só mais adiante, porém, é que o Dorso percebeu o que pretendera dizer
Robespierre, através dos sinais com os quais o surpreendera a apontar o pulso,
mas já era tarde. Compreendeu então que ele
“indicara os locais
onde estariam o anel e a pulseira dourada” que lá já não estávam mais, peças obviamente surrupiadas. Winton
pretendia, por fim, cooptar a conivência dos dois na atitude relativa ao
incidente, que se propunha. Sem estar com os olhos focados para enxergar aquilo
que o outro observava naquele instante, não havia como perceber a implícita
intenção do interlocutor inquisitivo.
- “Afinal, que de mal poderia haver em um
pequeno roubo a mais, naquela convivência indigna com a qual se relacionavam? ”
Restaria no caso duas opções e uma única solução: Ou o
Winston romperia a farsa - a primeira - ou se manteria indiferente às
desconfianças do oposto – sendo a segunda -, mais do seu gosto. Ficou, pois,
decidido, que nada seria mudado e lá
foram a garantir vagas para o desfile do carnaval, como desejo da maioria, que
embora fosse parte de um império absolutista, dera-se a decisão de forma
democrática.
DESVIO DE COLUNA SERIA DESASTROSO PARA O
DORSO.
As semanas se passaram e, algum tempo depois percebeu-se que
o lado direito do casaco encardido que os vestia - o único abrigo de que
dispunham - estava crescendo. Era o inchaço que deformava a linha original do
design que cobria o tronco, a inibir seus movimentos. O fato é que com
indiscreta estética, expandia-se o bolso do paletó, no seu lado direito.
Deprimido ou, quando preferia ficar sozinho consigo, era
naquele poço fundo e malcheiroso que Winston Spencer dos Anjos Churchill-II se
recolhia para solitárias reflexões que, não raro, duravam horas, às vezes
dias.
Doía ao Dorso saber que podia haver algo de errado com
Winston, membro de sua armada no lado direito do velho e gasto tronco, sendo ao
fim convencido pelos fatos, além da ajuda de Robespierre, a aceitar, contrafeito,
que a ocorrência se dava em plena normalidade.
Assegurou-se
na dúvida e voltou a se calar, sem nada comentar sobre o caso.
Continuava aguardando o dia em que o direito, por ele mesmo,
tomaria a iniciativa e viesse dar alguma explicação para tais esquisitices aos
companheiros.
Conheciam bem as manias de cada um e, numa noite em que não
se apercebeu da escapada do Winston, foi Robespierre que chamou a atenção do
Dorso adormecido:
- “São
dez e meia da noite! Você sabe onde seu braço direito está? ”
Perguntou Robespierre, arregalando-lhe as
pálpebras com as pontas das unhas sujas.
- “Sei tanto quanto você”. Respondeu
estremunhando a esfregar na boca o verso do seu interlocutor, dando o assunto
por encerrado e retornou de pronto ao sono, mas o esquerdo, desperto e
obstinado, foi ainda com os olhos arregalados e mais insistente.
- “Isso não está n-normal! Por vezes
acompanhei-lhe a partida e por isso sei que sai, mas sempre adormeço antes que
volte, não tendo ainda conseguido p-presenciar nenhum dos retornos dele. Não vi
ainda, mas g-gostaria muito de observar o ritual de aportagem, sei que ele
sempre r-regressa, é obvio”, prosseguiu tentando disfarçar a ansiedade
revelada ao gaguejar e apoiando-se, falsamente descontraido, no encosto do
banco de jardim, onde passavam a noite.
- “Lembra que ele não achou aquele relógio
junto ao tronco do jacarandá c-coisa nenhuma. Saquei na hora que ele estava
mentindo, você também viu, é-ou-não-é? Aqueles cigarrettes que ele tanto exibe
não acontecem por acaso. A mesma coisa ocorre com o isqueiro de ouro e ainda
com o anel de brilhantes que agora ele ostenta a g-gesticular exageradamente.
Não sei como os conse-segue, mas acho que ele vem nos traindo a confiança e
menti-tindo, segui-guidamente e é por isso que não confio nele. Tem que prestarbastantatençãonissaí,
vi-viu? ”
Repetia gaguejante e continuava Robespierre, erguendo
a voz claramente nervoso.
- “Você sabe d-disso e eu também s-sei. Faz
muito tempo que ele sai à noite enquanto nos iludidimos ou como se
ignorássemos. Prefere se esquecer solitário e silencioso nas sombras do seu
bolso, que, aliás, está inchando e o peso está lhe deformando até a postura
física o que vai terminar por afetar a coluna que nos suporta. E isso, cá para
nós, me diz muito respeito. Por essas-e-outras, estou achando a conduta de
Winston suspeita. Deveria é ser novamente avaliada”.
Robespierre concluiu contrafeito, tentando justificar a
irritação, elevava a voz perdendo o controle e exaltava-se, acabando por pegar
pesado, com as falanges encrespadas.
“- Eu
também acho que essa não é uma atitude legal, da parte dele”.
Comentou o Dorso, concordando, em parte,
como era de hábito em sua posição.
“- E
que providência se vai t-tomar, sobre isso? ”
Perguntou o esquerdo, inquirindo
inconveniente e com impessoalidade.
- “Isto está c-começando a me incomo-modar m-mesmo!”, concluiu
gaguejante.
- “Estou esperando que o Winston diga alguma
coisa. Prefiro que parta dele o gesto de estabelecer qualquer conversação sobre
tema tão delicado e íntimo”, respondeu o Dorso, conciliando.
- “Mas ele não vai iniciar n-nada”. Observou
Robespierre. “Se deixar por conta dele, o
que vai acontecer será “nules”. Ele falseia tanto com as palavras quanto nas
atitudes. Ele é um grande hipócrita, entende? Ele é dos que sorriem a cortar
súbito a expressão. Por compulsão e ade-dequação à ir-irrealidade d-dele, ele
mesmo, pessoalmente, mente. É um dis-ssimulado. E sabe que a comunidade conhece
a verdade e mente para essa mesma sociedade, fato que torna mais evidente e que
tentenganar, pretendendo ser quem não é, se transformar n’outro que também não é
ele.”
Sem
conter sua irritação com a zorrarmada,
prosseguia, às falanges retesadas.
- “Se você não t-tomar a iniciativa ele vai
continuar mentindo e acreditando na inverdade que ele é, o que para a
inconsciência dele, é coerência consistente e confortá-tável. Esse é o
faz-de-conta que o agrada l-levar a sério... P-para ele realidade e v-verdade
não convergem. São resultados, fragmentos de diferentes versões a recontar os
mesmos argumentos sob outras visões autênticas.
- “De fato,” - concluía – “a irrealidade é autoregeneradora a recompor-se de forma autoctone”.
- “O direito prefere a enganação”, prosseguia
Robespierre, “como meio de sobreviver
e de se redimir. No caso dele, a existência se adaptará ao conceito que a
preservar por tempo mais longo e sem mais querelas. A energia da vida lhe teria
surgido sob o signo de peixes, vital, subjetiva e fluida ajustando seu formato,
assim como a água, à forma que a contém. Não perca a coragem, pois se você não
se avivar, não saberá nem mesmo qual seria o desenho acabado de seu lado
direito, quando seu contorno final for alcançado. Tem alguma idéia sobre isso?
Será que você vai se tornar uma rara deformação única, coluna vertebral em
espiral! Sai fora! V-vamos a ele! ”
Concluía
convocativo o direito, pronto para invadir o espaço onde estaria seu oposto.
-
“Não devemos nem podemos dar o primeiro tapa, mas o segundo, é imperioso!
”
Reafirmou o Dorso, procurando acalmar o
esquerdo e continuando.
-“Lembre-se
que quem estiver no outro lado não será necessariamente seu algoz. O fato é que
no fundo, no fundo todas as coisas se adéquam, sendo, pois, questão de custo,
benefício e proporções. ” Argumentava em favor do que parecia ser o menor
dos erros, uma certa e evidente indiferença.
- “Esse
algoz, de quem quer que seja, não tem consciência, não tem mesmo não. ”
Desengasgava-se Robespierre necessitando
dizer o que pensava.
- “Não é tão simples assim. Ele age sem saber
se está certo ou errado. ”
Prosseguia, mantendo o cenário e mudando
apenas o ângulo da tomada de cena.
- “Vamos logo ver o que tem aí nesse b-bolso!
” - Conclamou seguindo para o outro lado do casaco ensebado em gesto rápido
a contorcionar-se.
- “Não é direito! ” – Respondeu o Dorso
reagindo com inesperado meneio a escapar do bote já em meio ao movimento e
surpreendendo contorcionadamente.
- “Olho por olho e dente p-por dente”, sentenciou. – “V-vamos ver o que Winston esconde neste
bolso que está c-cada dia mais int-tumescido...”
- “Não, isto não é prerrogativa nossa! ” Ordenou
o Dorso reagindo ágil e continuou: “Não é
correto e, põe em risco a ética, questão de princípio e respeito mútuo”.
Robespierre
concluiu em volteio inesperado a se desviar e ameaçando.
“-
Se você não aceitar vou mesmo sem a sua concordância e te deixo com t-tais
respeitos, t-táticas e t-téticas. Isso agora é cá com os m-meus conceitos e pre-preceitos e em assim s-sendo, assumo sozinho
a r-responsabilidade! ”
Disse e avançou. O Dorso tentou desviar-se em novo saracoteio
semelhante ao anterior, mas daquela vez falhou, sendo salvo pelo gongo.
“-
Agoranão! ”
Gritou apelativamente, como se o sintetismo inesperado na
ordem compelisse ainda mais à sua obediência. Gritou no pensar curto e falou à
garganta solta, concluindo o esforço de manter o tom.
- “ Eletávoltando,
vejalá nohorizonte!”
Efetivamente Winston se aproximava em voo
silencioso e reto, suave, vinha de volta.
Exibindo espetáculo inédito para Robespierre, este congelou
sua revolta no gesto, a fim de apreciar a encenação e, sem surpresa, observava
seu correspondente a estibordo ir se chegando a flutuar, em silente retorno. E
foi naquele instante, interessado no inesperado da cena e a atenção retida pela
rara encenação, que ele se acalmou a recolher-se deslumbrado e satisfeito
simulando que adormecia, num descarado fingimento, pois se mantinha atento para
desfrutar do espetáculo.
Winston prosseguia em seu voo indo se aconchegar, ajeitando a
extremidade do bíceps na boca entreaberta da manga do paletó e prudentemente,
se introduzir no estreito canudo de tafetá bordô, peça de entrada e saida da
veste malcheirosa que os abrigava.
Depois de aninhar-se ao lado do tronco avançou seguindo os
caminhos da mão em direção ao ombro até atingir o processo coracoide do úmero,
para se amoldar em osso após osso, da clavícula ao deltóideo e firmar posições,
ajustando-se ao acrômio, liberando finalmente o manguito rotador para destravar
o conjunto das articulações e os processos fundamentais. Em seguida tronco e
membros liberaram desde o interior das partes até o maior dos órgãos, para
recompor de dentro para fora os sistemas venoso, nervoso e muscular, sem deixar
marcas na epiderme, provocar dor ou desconforto e prosseguiu ao fim.
Passando-se por adormecidos embora despertos, Winston e Dorso
acompanharam o ritual. Mantiveram a atenção despertada e solidária pronta para
responder a qualquer cotuco. Teriam ocorrido sons quase inaudíveis quando
músculos, nervos e ossos se encaixavam uns nos outros retomando a forma
original das carnes sem mágoa ou incômodo, repondo a vida em seu monótono moto
continuo, perpétuo enquanto dure, como diria o poeta, pero com más fuerza.
Depois
se esqueceram os três, exaustos daquela jornada intensa.
Passaram as noites seguintes no albergue com
outros iguais, e o tema foi encostado.
DESDE A CORTE ATÉ A MISÉRIA DAQUELES
TEMPOS
Semanas mais tarde uma noite enluarada os encontrou nos
gramados da quinta da Boa Vista, jardins da vila imperial que por décadas fora
sede do reino e nos dias de então, há pouco tempo passado, perdera os
privilégios de ser ainda a capital política e administrativa do antigo e curto
império.
No alto de suave colina fora construído por outros senhores,
o casarão assobradado a sustentar torreões, mirantes e minaretes a sobreviver
airosas e lamentosas memórias a se apagarem ao tempo.
Aquelas sombras ressaltavam nas partes externas do casarão os
portais largos e altos da morada imperial que, sendo residência, fora ainda
sede administrativa, doméstica, emocional e política do breve e rico reinado
que o século engoliu. Seus salões e corredores haviam assistido, vivido e
ouvido os últimos ecos coloniais das traições a provocar a decadência imperial
e o começo do pulsar da alma republicana que já chegava com seus fantasmas
desde os primeiros decretos ainda a se arquitetar até aqueles dias. O antigo
palácio dava a impressão de que flutuava no alto da colina, assinalado por
luzes estratégicas que homens e a noite desenhavam.
Diante de cenário tão instigante, Winston não conteve o
entusiasmo e começou a discursar sobre os tempos heróicos do império, paixão
recalcitrante, cujas imagens e seduções recolhia no saber de antanho e em
noitadas alhures. Descrevia as cavalgadas do imperador assim como os mexericos
coloniais e as negociatas com a City, as tramas dos condes, duques, teudas e
baronesas. Deteve-se com gosto a narrar histórias sobre o poder que desfrutou
em corte, certa amante de um dos monarcas, dita marquesa de Tal, da qual nunca
tinham ouvido falar antes. E teria existido uma segunda dama, esta viscondessa,
relembrou diante o encantamento de todos. Embora nativa teria formação francesa
e total intimidade com o último dos imperadores, tão breves.
Descrevia aqueles fatos com tantas cores, que todos
embarcaram no tempo e adormeceram os dois ouvintes, como súditos fieis de
empenhados soberanos injustiçados pela memória e aviltados por historiadores
mesquinhos, lenientes e poltrões. Segundo Winston, seus heróicos personagens
teriam sido nobres e hábeis suseranos a padecerem amargurados, distantes,
entristecidos e vilmente traídos. Concluía sua “charla” em longa explanação, buscando justificar o apreço pelos
distantes pares de seu ilustre patrono, o bravo lorde britânico de rica
linhagem a assinalar com arrogância e cavoucando parentescos exóticos, a fim de
atrair a nobreza anglo saxônica às vizinhanças dos seus, através de redes
austrohungarianas de consanguinidades.
Adormeceram os três sobre a grama limpa e morna no jardim da
encosta.
Não demorou para que Winston desse início ao seu ritual de
partida. Primeiro deslocou junções e liberou os ossos que as sustentavam a
continuar suave, ao tempo em que os sistemas se desconectavam, sem provocar dor
ou incômodo. Assim foi, até se sentir livre, seguindo pelo túnel da manga
fétida forrada em laquê originalmente bordô, a fim de ganhar a liberdade de
alçar vôo e partir. Embora fosse noite, a luz vinda do palácio rebatia nele, transformando
a pulseira de metal do relógio em joia a reluzir na escuridão. Refletiam
brilhos vindos de luzes soltas nos gramados a circundar o casarão imperial. La
se foi ele noite adentro e adormeceram os deixados
sobre a grama fofa por aparar.
Ainda
durante a mesma madrugada, Robespierre foi quem o acordou, daquela vez.
-“Winston
é um monarquista!”
Comentou, em tom acusatório e o Dorso
respondeu estremunhando a acordar.
-“
Porque você diz isso, homemdeDeus? ”
-“
Não me diga que você não sacou? Até hoje ele aprecia as elites econòmicas e a
aristocracia. Percebe-se nas expressões e está no subtexto do discurso que fez
sobre a corte e os cortesãos, o reino e o imperador com suas concubinas e
sacanagens. Isso, além das descrições dos f-fatos e do apreço que ele tem pelo
universo de sedições e obsceno convívio, não diga que você não sent-tiu? ” Questionou
o interlocutor que, morto de sono
respondia de forma civilizada e quase inconsciente.
-“
Para ser franco Robespierre, ao ouvir as observações do direito, gostei foi de
saber dos feitos e dos fatos, e, apreciei também ficar conhecendo melhor alguns
dos personagens da história. E o que mais gostei foi deparar com o amontoado de
sonhos já revelados e poder aproveitar da forma envolvente como Winston os
descrevia, a lidar com a memória do que haveria de ter sido. Fez isso como se
fossem fatos recentes e contemporâneos deles, estilingues de jaboticabeira,
acaso pudéssemos até mesmo ter participado daquilo que havia sido”.
Concluiu
despertando de vez para deduzir lúcido e Robespierre reagiu:
-“A natureza te fez crédulo demais, sô! É por isso que esta-tamos nessa
situação. P-pois saiba de vez, amigo, que ing-genuidade pura é o mesmo que
inépcia ou ausência de coragem. Causas sem qualquer nobreza ou recompensa e a
ingenorância como arma é imprecisa e mais dispendiosa do que a mais exigente
das amantes argentinas. Veja como se avoluma o bolso do lado direito do nosso
casaco a cada manhã. Hora dessas vai acabar explodindo”. Insistiu e seguiu
avançando, sobre o tronco, quando disse, quase gritando:
-“V-vamos
ver afinal o que existe neste s-saco fedorento ou !...”
Clamou
frenético, ao que o Dorso despertado respondeu na pinta.
-“Isso não é correto! Ninguém entre os
nossos merece sofrer tal violência contra a ética! Essa reação seria pior,
caracterizaria agressão, um delito ainda mais grave que envolve invasão de
propriedade e de privacidade! É muito, muito ofensivo! Isso pode dar até
cadeia!
Dimensionava
a cena, vista da luminosidade do casarão imperial a elevar-se no alto da
colina.
- “Ora, cara! Você está confundindo respeito
com fraqueza. Não há razão para se assustar, bem como nada há a justificar seu
medo do Winston e, além do quê, falta de pudor é sinal recorrente de que o
desvio termina por equilibrar a demanda com a oferta...”, prosseguia
inflamado Robespierre, “o resultado das
vontades indica que nós t-temos o direito de saber o que nos está acontecendo. Somos a única ansiedade a provocar
contradições e expectativas diferentes. Dividimos em partes iguais, o
sentimento de que as expectativas sejam proporcionais ao que, no horizonte está
vindo ai.
Terminou
irônico, assumindo, ele também, as
conseqüências da genética.
- “Faz muito tempo que ele saiu? ”
Perguntou o Dorso tentando adiar o inevitável.
- “Não, nunfaznão. Agora me deixa ver o que há
dentro deste maldi-dito bolso...”
- “Acho melhor esperar um pouco. Ele pode
voltar...”
- “Pois que volte. Queremos que ve-venha e nos
veja examinando o que guarda dentro dessa alcocova fedida. É necessário saber o
que acontece no saco sem fundo do lado oposto deste nosso ultrajado paletó,
transformado em abrigo para anormais. Precisamos saber, por razões de
ssegurança, detalhes de como foi que tudo aconteceu, questão de sobrevivência!
”
Robespierre terminou por fim seu blá-blá-blá e escapou ágil
por trajeto diferente do anterior a contorná-lo lépido, seguindo pelo lado
oposto da veste.
Qual atacante lesto, driblou o zagueiro, esquivou-se e se foi
a examinar o conteúdo do nicho no ladireito, enroscando no tronco as sobras
ensebadas do casaco fedegoso.
Este fora confeccionado há anos em tropical, tecido próprio
para vestes refinadas. O terno lhe fora doado pela missão religiosa há alguns
bons pares de natais passados e dentro dele caberia, folgado, dois troncos,
posto que fazia às vezes de tenda a abrigar do frio no inverno e cobertura
generosa a proteger das intempéries, no verão. Sujo e ensebado o paletó
assumira a forma alargada do ombro ossudo que o vestia e se tornara
impermeável, transformando o verde creme original na cor sépia, com tons de
musgo seco, que resistia à sujeira naqueles dias.
Depois do drible Robespierre desapareceu no
fundo do bolso dividindo os silêncios e se aquietou.
Por lá ficou longos minutos ao tempo em que o Dorso, curioso
se agitava a alongar o pescoço, a imaginação e os olhos para ver e perceber o
que lá havia, dentro do inchado bolso escuro. Aguardava do lado de fora pelo
dossiê, pois de onde alcançava com o olhar sobre a cena, não tinha ângulo de
pleno entendimento. Dali avistava somente parte da cova profunda e obscura do
recipiente encardido. Com acesso visual apenas à face mais turva da penumbra, a
resultar precipitada qualquer conclusão sem ter conhecimento sobre o que
estaria oculto nas sombras mais agudas.
Por
fim, Robespierre emergiu do bolso trêmulo e com o semblante intimidado.
“- O
que foi que você viu? ” Perguntou assustando-se com a expressão do outro, o
tronco amigo.
Forçava
a respiração em silêncio, antes de responder aos olhos arregalados.
-“
V-você...Você não v-vai a-a-cre-cre-di-di-ta-tar”.
Gaguejou
ao falar sem dizer nada, ampliando o mistério.
-“
Diga logo o que foi que você viu e que te deixou neste estado, cara!”.
Voltou
a pedir o Dorso assustado.
-“ V-você... na-não va-vai a-a-cre-cre-di-di-ta-tar”.
Gaguejou
no mesmo ritmo binário levado pela respiração ofegante.
-“ Diga o que foi que você viu e eu juro que vou acreditar”.
- “É inacre-cre-di-di-tá-táve-vel! Eu vi-vi
bra-bra-ço-ços”.
Repetia: “Bra-braços, braços, entende? Exclamou perguntando.
- “Braços? ” Interrogou exclamando
- “Si-sim-sim, uma infi-n-ni-da-da-de de-de
bra-bra-ço-ços. B-braços o-orfãos. Serrado-dos, amputado-dos, arrancado-dos.
Bra-braços direito-to assim
co-como-mo ele”, dizia indicando com o dedo o lado oposto no dorso.
Procurara um ao menos que não pertencesse àquele grupo, mas não encontrou. - “São todos braços direito. Uma enorme coleção
d-deles, de d-dezenas dele-les. Parece que os esquerdos estão a salvo da sanha
deste mani-ní-aco, pelo menos, é o que os rastros nos fazem acre-cre-di-ditar”,
ameaçava concluir e concluía:
-“ F-felizmente!”.
-“ Mas não é possível!”
Insistiu o Dorso surpreendido, e continuou: “E eles estão trabalhando?
Produzem alguma coisa ou estão só no bem-bão? E o custo social, quem banca?” E
para concluír seus protestos. “- Um
braçocida? ”
-“ É-é
i-isso aí! E ele é neo-liberal! É é issaí! S-se e-eu v-vi, v-vo-c-cê
t-tam-b-bém p-pode v-ver”.
Robespierre o desafiou ágil, dirigindo-se de novo ao fundo do
bolso a desaparecer rapidamente engolido pelo buraco escuro. Ali ficou justo o
tempo para retornar já trazendo com ele o braço de uma criança. Chegou perto
das narinas e dos olhos do Dorso para este poder cheirar, lamber, ver e
confirmar. Era realmente um braço direito recém acervado, comentava consigo a
observar o osso revestido de sistemas, carne, nervos e o frescor de músculos
recém-estreados. O que cobria o conjunto era a pele alva, translúcida e
impecável de uma criança e trazia por fim, uma correta ficha catalográfica com
dados precisos. Refinado trabalho de preservação orgânica, assemelhava-se ao
braço de uma boneca de carne e osso, pois estava quase vivo ainda. Fora
transformada em peça museológica para ser exposta de forma tecnicamente
adequada aos curadores mais exigentes, com dados, peso, medidas e datas, tudo
isso em perfeito trabalho de profissional. Faltava nelas, porém, suas origens.
Como antigo apreciador da arte da taxidermia não continha a alegria e o
entusiasmo a comentar esse aspecto da cena que estava vendo e da qual fazia
parte, exclamando como se fizesse um bruta elogio:
- “ É
horrííível!”
O cenário se diluía ao som do acorde grave e
lamentoso de um violoncelo a se esvair.
- “ E v-você está diante de apenas um. Lá
embaixo existe uma g-galeria deles. Aguarde, pois vou bbuscar outros para que
v-você também os v-veja...”
- “ Não, não quero ver mais nada! ” Confirmou
grave, porém em dúvida por ser um curioso nato. Falou sem muita convicção, e
ainda para ninguém, porque o esquerdo, surpreendentemente ágil, já se enfiara
novamente no bolso que outra vez o engoliu para vê-lo ressurgir minutos depois,
carregando um novo braço. Este deveria pertencer a um fisiculturista de tão bem
desenvolvido num belo desenho. E não parou ali. Continuou entrando e saindo sem
dar tempo para a letargia do horror e a cada ir-e-vir revelava novas
preferências. Em minutos apresentou boa parte do macabro acervo da galeria a
reunir um amplo conjunto deles, inertes, amarelos ou pretos, brancos,
vermelhos, tatuados, velhos, jovens ou envelhecidos, pequenos ou grandes,
fortes ou frágeis, espalhados sobre a grama. A qualidade de cada uma das peças
expostas e não apenas a quantidade delas correspondiam ao poder e a satisfação
de possui-las e ter tantos braços à serviço dos exloradores a comandá-los.
Dezenas de braços, quantos mais os tivessee mais poderoso seria, quantos braços
controlasse, tanta riqueza e de tanto poder seria o senhor. Era o proprietário
inconteste de uma infinidade de braços a lhe servir. Um qualificado monte de
membros saudáveis e catalogados, esparramados sur le gazon.
- “ I-isso é c-crime”, repetia Robespierre
escandalizado, a cada ida-e-vinda. “- Isso
é r-repugnante, é crime hediondo, é o poder e o exibicionismo morrendemedo”, conclamou
por fim, buscando justiça.
- “ Sem dúvida”, confirmava discreto e
pasmado o Dorso, ainda surpreendido.
- “ Isso
é um crime e precisa ser expi-piado o mais r-rapidamente p-possivel!”
- “
Como assim, expiado? Defina isso!”
- “ Condenado à sentença m-máxima”, fez
silêncio e concluiu. “- Com o
extermínio”.
- “ Você
está constatando, investigando, acusando, relatando, julgando e condenando a
uma vez?
- “ Eu não. “Nós” esta-tamo-mos decidindo sobre as ações passadas e futuras de
um c-criminoso s-safado, perverso, sem v-vergonha ou sem recuperação. Um
bracicida, um gatuno destro, arrogante e cínico bracicida! Quando você diz que
o sistema s-somos nós, Dorso, não está errado. Está certíssimo. Nós somos
promotores, nós advogados, nós jurados e juízes, sem nos permitir fugir ao
inesperado de ter de ser também c-carrascos inclusive d-de nós m-mesmos, c-caso
seja o caso.”
- “Teremos antes, de ouvir o que o principal
suspeito da contravenção terá a nos dizer, pois até mesmo ao celerado mais
distante se reserva o direito de defesa”, definiu sua posição emocional,
legal e física de Dorso premido pelas laterais.
O
esquerdo respondia às falanges encrespadas,
controlando a altura da voz.
-
“Pura perda de tempo! Ele foi cruel e s-sádico, mentiu e oculto-tou. Temos a
prova, temos provas, dezenas delas p-preservadas, c-catalogadas em fichas
m-museológicas e com raro histórico antropológico, calculadas em litros, p-peso
e volume, partindo da mais correta definição museográfica. Não seria por falta
delas que iríamos desistir de nossos propósitos. O único “porém”, se é assim
que se diz, é que não sabemos ainda suas origens e além do que”, fez uma
pausa e continuou, “o Winston é um gabola
que sempre quis me humilhar”.
O
esquerdo concluía opiniões, sem esclarecer suspeitas, sequer
ressentimentos.
- “Mas não sabemos a razão, o por quê? A maior
das leis, a do bom senso, propugna o princípio do motivo como base fundamental
da avaliação, sem o que não há como ocorrer agravo. Onde estará a
justificativa? Há sempre lógica, até mesmo para a explicação sobre a falta
dela, ainda que isso possa parecer um absurdo”.
Repetia exaltado e se reprimindo, mas com a perspectiva de
informar ao planeta sobre o ocorrido, inclusive alertar a Winston, onde quer
que ele pudesse estar.
- “Havia
necessidade de se saber onde ele estava e ouvi-lo, antes de decidir o destino
dele”.
- “Necessidade inútil, pois já te-temos as provas. Para mim as peças
disponíveis justificam mais que demais, independente de quais sejam as
incertezas. Ele c-coleciona braços, meu Deus! Elimina a mão de obra alheia só
por ganância pura e maldade completa do monstro, que nele se move! Ele aprecia
punhos, unhas, cotovelos, falanges e pele, para comer? Não, para zoar. Ainda
assim existem dúvidas? Só mesmo alguém de mente muito obtusa e cabeça de tacho
pode ainda ter alguma dúvida sobre o lado verdadeiro da realidade, sabendo
ainda, que, em muitos casos a lei dos homens, longe de ser impessoal é
restrita, restritiva e definitivamente burra...”
O Dorso teve dificuldade para convencer Robespierre de que
deveriam esperar sem emitir juízo e, já que seriam obrigados a uma decisão, que
ouvissem antes Winston. Só então avaliariam com clareza legal, humanitária e
jurídica o conteúdo daquilo que fora encontrado no fundo do bolso direito do
casaco, a exótica coleção de braços escravos.
Alguns
deles ainda com anéis, pulseiras e tatuagens. A maioria nua, pelada.
Poderiam ser variadas as razões, mas seria necessário saber
dos motivos que teriam levado o nobre e culto Winston Churchill-II, a cometer
ato tão doentio de arrancar, roubar ou seqüestrar braços direitos. Com que
direito?
- “Era
importante ainda, dimensionar a enorme angústia que estaria afligindo Winston
ChurchillII”, afirmava o Dorso a proteger os seus sem pré-julgar e entrever
a inocencia nos despojos do crime.
Propunha
que o caso fosse avaliado por especialistas. Buscava isenção num olhar
neutro.
Enquanto conversavam, de tempos em tempos Robespierre se
ausentava da cena, a fim de devolver os braços que havia retirado da funesta
galeria. Tétrica ou não, era uma amostragem profissional e estava adequadamente
montada, o que era ponto a favor do malfeitor, ainda que o horror. Observava os
fatos e calculava em silêncio consigo mesmo, ouvindo melhor o que lhe restara
do bom senso tão comum ao velho Dorso. Terminada a tarefa, arrastou-se de volta
ao local onde estavam antes da descoberta que os fizera se distanciar de lá. Um
recanto no vasto jardim imperial e dali podiam avistar de novo o palácio,
observando as luzes que faziam o antigo prédio flutuar sobre um vazio sombreado
na vegetação escura. Ao fundo brilhavam estrelas na noite sem lua ou cometas
caindo.
Continuaram ali, recostados como se já estivessem
adormecidos. Mantinham, porém, os olhos semicerrados a perceber tênue linha de
luz a lhes vazar entre as pálpebras.
O antigo palácio imperial se estendia
no alto da elevação lembrando histórias que Winston gostava de contar, com seu
jeito arrogante e magisterial. Para o líder do grupo o que se destoava era,
antes do conteúdo, o trato que o direito dava aos fatos. Tanto que acabava por
deturpar a realidade trocando-a por outra, não idêntica, mas similar, segundo
as duras observações de Robespierre, com as quais, até o Dorso acabava por concordar,
vez em quando.
A
noite estava quente e continuaram estirados sobre a grama bem cuidada do amplo
jardim enquanto o esquerdo relaxava a rezingar, apoiado sobre o toco que lhe
restara da perna direita. Deixava livre o encaixe de Winston na boca da manga
do paletó até a clavícula, permitindo ao ausente - por dedução própria -,
espaço livre para as manobras de retorno.
Enquanto se deixava a aguardar que os fatos se dessem, em
jogo de cena, o esquerdo rosnava o
discurso de acusação mal disfarçando o sofrimento que tudo aquilo provocava
nele. Fazia mais ou menos meio século que sobreviviam em parceria e conviviam
em constante ambiente cheio de uma paz dissimulada. Ainda assim conseguiram
manter autonomia um do outro todas aquelas décadas, conservando e sem permitir
que nada lhes infectasse o melhor relacionamento. Eles eram três leais
parceiros convivendo com as esquisitices uns dos outros e se adequando até o
fim.
Teriam
agora que julgar a um dos seus, numa acusação de crime hediondo? Isso
era horrível!
Aguardavam o momento final com discrição, procurando sinais
de retorno do Winston flutuando no céu entre nuvens, estrelas, sombras e
galhos, buscavam, mas não viam nada a lhes chamar a atenção. No íntimo o tronco
não queria reencontrar seu membro desviado. De fato, desejava que não voltasse
mais. Não naquela noite pelo menos, enquanto Robespierre estava putodavida e por certo desperto, embora
simulasse dormir, mas na botuca. Melhor não voltar nunca mais, inda mais
naquela noite.
Mas
não ele seria quem era, pois o direito voltou no alvorecer daquela mesma
madrugada.
À distância desenhou-se por inteiro sua silhueta alongada e flutuante,
sobre a luz do alvorecer, pairava entre as folhagens do jardim imperial.
Retornava para junto deles em vôo discreto, buscando lugar de abrigo. Trazia
mais um pacote alongado e enrolado por fio de algodão, barbante fino, envolto
em papel grosso para embrulhar carne no açougue, semelhante a outros tantos que
já transportara em suas repetidas escapadas noturnas. Veio de vagar para aconchegar-se
e rastejando avançava brando e incerto a tatear com as bordas como sempre
fazia, a procurar pela boca de entrada da manga do paletó, como se fora um
braçoduto de cor grená em seu interior.
Ante
de sumir ali dentro foi, que num salto felino, Robespierre caiu firme sobre
ele.
Imobilizou-o pressionando à mão gauche e
grande a prendê-lo por fim, virilmente.
Nos
instantes seguintes já tinha dominado e aquietado o pervertido.
Winston reagiu ao inesperado de forma ainda mais inusitada
que sua inoperância, encolhendo-se e enrijecendo os músculos a se controlar a
permanecer estático e tenso, comprimindo as juntas como se esperasse pelo golpe
final e acovardou-se. Quis o desfecho, que fosse rapidamente subjugado e, por
um instante, não sabendo como reagir, aspirou fundo, num suspiro longo e
revelador de sua entrega, surpreendendo pelo tanto de resignação e renuncia que
tal gesto representava. Ali estava o orgulhoso Winston submisso, e, ao cruzar
as expressões e os sentimentos com Dorso, esse tinha a intenção de fazê-lo
entender, através o olhar, que em seu coração havia muito mais amargura do que
reprovação.
Era, pois, com tal sentimento que estavam convivendo
naquele momento, o que doía.
- “O que qui é isso? ”
Inquiriu por fim Robespierre, contido a
pulso firme pelo inesperado braço esquerdo.
- “Nós
fazemos as perguntas”. Respondeu rudemente,
o outro membro.
O Dorso considerou-o ainda uma vez precipitado, pois gostaria
ele mesmo de ter dialogado com Winston e até podia ter repetido o mesmo texto
que Robespierre, porém, de forma fraterna a lidar com o próprio sangue,
necessitando ouvi-lo com paciencia antes, e ampará-lo depois. Ao se antecipar
sobre ele e ignorando a consanguinidade, tratava-o indiferente como se fosse um
qualquer.
Entendia ser aquele seu pior momento e essa a melhor atitude
a tomar, calculava inseguro, mas o esquerdo chegou antes, cortando-lhe a
palavra e afetando a fé em sua autoridade, ilegitimando assim, sua liderança
entre eles. Convencia-se o Dorso de que estava sendo provocado, e não apenas
liderando os seus membros. Robespierre, indiferente, continuou a pressionar o
direito subjugado:
- “Mostre
o que está trazendo dentro deste p-pacote, só então eu te s-solto! ”
- “Não há nada que possa interessar a vocês aqui”.
Respondeu o mais firme que conseguiu
Winston, e prosseguiu tentando intimidar com autoridade.
- “Agora
me solte! ”
Ordenou enquanto a mão firme de Robespierre o retinha,
mantendo-lhe imóvel e aumentando a tensão. Isto o fazia entender melhor, que,
também sem a base física que normalmente o Dorso lhe oferecia, sua confiança e
capacidade eram ainda mais pífias do que imaginava.
- “Não solto! - Respondeu - Só vou fazer isso quando você mostrar o
que está trazendo dentro desse pacote encardido que está segurando enquanto
flutua, fingindo voar”.
“A
hora não é boa para isso, estou cançado e tenho nada a mostrar para você, nem a
ninguém! ”
Insistiu Winston, concluindo com a voz mais
firme de que pode lançar mão:
-“Não
dá para explicar tudo agora, é cedo e ainda não chegou o momento para essas revelações.”
- “Nós temos uma surpresa para vocêzinho! ”
Robespierre
fez uma pequena pausa e prosseguiu conservando o tom irônico na voz:
-“Não precisa esconder mais seu segredo, pode ficar tranqüilo, já
sabemos o que tem neste seu bolso fedido e escuro que está inchando como se
estivesse prenhe. Já visitamos sua sinistra coleção de braços direitos e lhe
enxergamos as vísceras pelo avesso, meu camarada Winston. Mostra então o que
estás a trazer aí, mostra agora, seu hipócrita, vai! ”
-“Vocês ousaram fazer isso, aproveitaram-se da minha ausência? Isso não
é justo e nem é ético! Vocês invadiram a minha intimidade? Não, não posso
acreditar’!
Em seguida, a mudar o timbre da voz e apontá-lo direto na
carranca com o dedo indicador, continuou a questionar cambaleante e olhando
fixo para a cara que encimava o tronco.
-“...Até
tu Dorso? ”
Perguntou fazendo o tronco forte e ossudo recuar intimidado e
Robespierre se exasperar ainda mais, diante do escárnio que se armara pela
frouxidão do líder, que não havia sabido defender suas convicções no momento
certo. Nocauteado pela realidade e assustado pelo irreversível, o direito
distendeu então os dedos que retinham o volume estático, envolto em papel
grosso e atado com o barbante fouxo, que trouxera da noitada, entregando enfim
os pontos e o pacote. Não esperou um instante sequer e desfez o enlaçado de barbante
do embrulho que embargava o interesse de todos.
Não houve surpresa, ou quase nenhuma. Apenas o absurdo
se confirmava nos últimos graus.
Era mais um braço, direito como os
anteriores, observaram os dois em eco.
“-Era
um membro de criança. Mais um braço do lado direito! ”
Repetiram em voz baixa eles dois, para eles
mesmos ouvirem, cada um com seu propósito.
Fez-se uma pausa e individualmente
escamoteavam assustados suas culpas.
-
“É importante que o senhor saiba que isto é
um julgamento”.
Prosseguiu Robespierre, dirigindo-se ao aprisionado e acuado primeiro ministro Winston, de forma
impessoal e oficial, buscando a distancia adequada enquanto o Dorso inverteu o
gesto paternalmente.
-
“Queremos
que você explique o que estamos vendo e nos diga se é verdade, mentira ou
desatino.
Vamos
ouvir para então, decidirmos qual será a sua sentença, caro e desnorteado
membro”.
-
“Vocês
erraram. Invadiram a intimidade do sono e acordaram antes do fim do sonho!” Resmungou
forte Winston, fugindo a seu tom natural de voz, dessa vez rouca e
furiosa.
- “Apenas sonhos que sobrevivem a pesadelos chegam a finais felizes, são
braços, não se vê? Iguais a mim, similares, mesmo que antagônicos. Vocês não deveriam ter feito o que fizeram.
Perderam! Perderam! O êxito vai impor sempre mais hipocrisia e menos
resignação. Dissimular é a habilidade que os despertados ainda não assimilaram.
Ironia é a via através da qual se pode ver além e o auto extermino pode ocorrer
mais lento, mas nada que se diga agora servirá como resposta. O problema é que
vocês não entenderam o espírito da festa e por isso dançaram fora do rítmo. Ao
tempo em que se comemora a sobrevivência é preciso ser sorrateiro e mais astuto
ainda na convivência, seus panacas! Vocês foram afoitos e previsíveis! A gente
tinha muito a receber, bastava seguir sonhando, sempre, talvez até fosse
possível a felicidade, não tivessem metido os pés pelas mãos e nem feito da
alegre comédia sinistro dramalhão! Invadiram o universo paralelo a dormitar na
rota dos seus pares e acabaram despertando-o completamente perdido, à deriva e
fora de qualquer das suas destinações. De resto, o resto da rota a rolar nunca haverá
de relar tão bem assim.”
- “Não diga asneiras - respondeu o
esquerdo -, está falando é muita bobagem.
A gente estáva bem acordado aqui cos’olhos arregalados, esperando e não tinha
ninguém perdido a rolar a enrrolação. A gente estava era só f-fingindo d-dormir
e v-você, avoando por aí, nem r-reparou, né? É pirado mesmo!” Fez uma pausa
e concluiu o que tinha a dizer até ali:
- “ Mas
que seja assim, mesmo que não dê para entender, vamenfrente!”
- “Dê para a gente um único e simples motivo.
É isso apenas o que f-falta, para concluirmos n-nossos veredictos.” Explicava ofegante Robespierre.
- “Máoque nundá épra deixar pralá, comose
numfossenada, entendeu?”, concluía sem fôlego.
O
Dorso assistia o diálogo e permanecia atento e impacientado, aguardando uma
deixa.
- “Não imaginamos a razão que levou a mão a
desferir o golpe, nem dá para ajuizar sem conhecer os detalhes das intenções. Só
você pode ajudar a te acudir, se te interessa que seja assim.
Interferiu
discreto o esquerdo, firme, mas quase benevolente.
- “Você é um criminoso hedi-diondo e ponto. Deverá p-pagar por seu
crime odiento e a menos que exista motivos a nos comover no sentido inverso a
que os fatos nos conduziram até aqui, para mim a sentença já está definida. Exasperava-se
por outro lado Robespierre sob as vistas do Dorso.
Inflexível,
questionou enquanto aguardava qualquer reação do interlocutor catatônico.
- “ Vamos, cara, digalgumacoisa!?”
- “ Não sei falar às pedras não é minha
especialidade”, explicou-se Winston transpirando e exausto.
Completou o curto e vazio discurso a mergulhar no silencio.
Falava e vagueava, e o que dizia tinha compromisso com desajuizados
ressentimentos que ao fim revelavam frustrações pessoais.
DO
CRIME AO AUTO DE ACUSAÇÃO
Como promotor implacável, levado por antigos e graves ressentimentos,
Robespierre fazia perguntas que chegavam surdas ao coração e aos ouvidos de
Winston ferido de morte, tendo restado como sua única defesa a amurada
invisível e intransponível erguida à volta dele por ele mesmo, traduzindo
ideias sem empolgar, ao lançar mão de palavras sem sentido, com destino ao
futuro.
- “Vocês
jamais entenderiam”. “Vocês perderam ”. “De fato todos nós perdemos”.
Tanto o Dorso quanto Robespierre queriam uma explicação, um
sentido que fosse. Ao mesmo tempo o lado direito não se fazia entender,
dissimulando falsas idiotices, lógicas e ignorâncias.
Mais que exaltado e atuando como autêntico promotor,
Robespierre denunciou e resgatou o Winston pervertido, monarquista, mentiroso,
larápio, arrogante, aproveitador, pretensioso, maníaco, cínico, louco e irônico,
que ele era, lembrando-se do aventureiro, do utopista, do sonhador, do
humanista assim como do deletério e do avacalhacionista. Nada se apurou a não
ser o silêncio do réu e do esquerdo a se fazer acusador, jurado, advogado e
juiz enquanto o Dorso, qual audiência submissa e queda, assistia o desenrolar
do enredo a entender que Winston já se dava por condenado. Da sentença só
restava confirmar a pena e aplicá-la, ação iniciada sem plano bê e sem lhe antever
o fim constrangedor.
De fato, o Dorso relutava em aceitar final
tão despropositado para uma aventura familiar. Buscava atenuantes, verdades ou
mentiras, uma palavra que fosse, qualquer uma que viesse do nada bastaria, e
eles se articulariam até dar a essa, o sentido, que ao fim haveria de transformá-la
em justificativa para iniciar a reação de livrar Winston dos seus pecados,
preservando-o da pena capital e garantindo por mais tempo sua sobrevivência
indiferente. O que buscavam era uma dica.
Bastaria
uma palavra ou até uma letra, mas não, Churchill se mantinha silencioso e
torvo.
Mesmo que Robespierre não fizesse questão, o Dorso realizava
tentativas de cooptar Winston a fim de livrar-lhe a cara. O esquerdo chegou a
ameaçar-lhe a sobrevivência de forma física, como forma de coerção e sobre a grama ficaram por horas a decidir
o destino de um deles.
Continuaram
até que noite alta, adormeceram famintos, em sono intranqüilo.
O Dorso seguiu a inquietação de Winston até este se acalmar,
sendo o último a adormecer e depois continuou acompanhando seus próprios olhos
a se fecharem lentos, apagando o último fio de luz. Desejava que Winston
partisse, escapasse para sua carreira de aventureiro solitário e que o
fascinava, levando consigo sua iniqüidade e, livre de medos, quem sabe
aperfeiçoasse as habilidades de pecador e, talvez conseguisse ser apenas
infeliz. Adormeceu em posição que facilitasse a operação de ele se separar e partir,
ir embora, caso optasse apenas por escapar do cenário de aquela vida.
Como das vezes anteriores Winston contrariou a lógica
evidente, e preferiu ficar, a fim de enfrentar por inteiro a decisão, mesmo
ciente de que sua condenação viria na certa. Permaneceu ali o resto da
madrugada, não se moveu, falou ou chorou, mas deixou implícita sua ironia ao
sorrir irreverente no amanhecer de seu sabido derradeiro dia, dia D. Apenas
despertou e se esticou em direção ao céu, exibindo no dedo médio o anel de
brilhantes e no pulso o relógio Omega com a rica pulseira dourada e flexível e,
enquanto informava as horas, convocava os circunstantes para o dia de jornada radiosa
que se anunciava, - “Vamos à vida! ”.
AINDA
NAQUELA MANHÃ A JUSTIÇA FOI IMPLACÁVEL
Assim foi que ao longo do dia o Dorso terminou de devorar
Winston Leonard Spencer dos Anjos Churchill-II. Comeu sua carne, limpou seus
ossos como era de se esperar e queimou seus bens. Do que restou atirou tudo no
rio junto com os outros braços da infame coleção, com se isso solucionasse os
problemas e destruiu junto os registros museográficos. Foram dezenas de membros
a se transformarem em alimento para os derradeiros peixes do rio turvo e
oleoso, que sobe e desce ao rítimo das marés. Na tarde do dia anterior, a
sentença definitiva fora por fim proferida tendo o ato ocorrido a partir de uma
eleição em aberto, colhendo os votos - sim ou não -, dos envolvidos, inclusive
o do próprio réu. Os votantes explicariam aos demais membros do juri as suas
justificativas para tal decisão, qualquer que fosse ela. A medida tinha fim
didático.
Winston
se absolveu conforme previsto, mas não deu explicações a justificar as razões
do voto.
A decisão desarmou o esquerdo e o Dorso, pois contavam que
seu voto fosse a favor dele, por certo, e contavam ainda, que como
justificativa de tal decisão terminaria por fornecer o argumento que seus pares
poderiam usar para absolve-lo e como não houve justificativa, o que se deu foi o
empate ao fim, cabendo a Robespierre, pois - com indisfarçável escárnio -, a
decisão final de condenar “sir” Winston Spencer Leonard dos Anjos Churchill-II,
à extinção, levando o Dorso à reestabelecer a barbárie na convivência entre eles.
Executou-se a sentença sem qualquer
comentário gastronômico por parte do carrasco. A cerimônia se alongou à partir
do momento certo, e se prolongou pelo restante da jornada, em solenidade
marcada por respeito e calor humano, pois já nas manhãs seguintes à funesta
devoração de Winston, os carrascos começaram a sentir em seus vazios a ausência
dele, assim como lhes fazia falta a arrogância do devorado. O mesmo ocorria com
seu tom de voz peculiar, seu orgulho petulante e o intimidante silencio de sua
irritante capacidade dedutiva tanto precisa quanto perversa. Constataram os
dois em seguida, que o planeta ficara maior e menos maldoso, ainda que cheio de
nada sem as ironias do direito que fora servido como repasto. O cruel
magnetismo autoritário que ele desenvolvera antes começava a fazer falta nas
vidas monótonas dos que ficaram. Robespierre, por outro lado, se mantinha
amuado, ele sentia mesmo a falta de Winston Churchill-II mais do que imaginava,
embora desdenhasse aquele sentimento a confundi-lo com outro de efeito
completamente invertido. Não raro lacrimejava e o Dorso, triste e cúmplice, enxugava
as lágrimas que lhe desciam cara abaixo, com o avesso do parceiro que lhe
restara, deixando escapar-lhe o pranto, escorrendo sobre os pelos sujos da
barba ruiva. No mais era o silencio e além do soluço discreto, ninguém dizia
nada. Apenas recordavam retraídos a juventude, e conjecturavam solitários, os
dois, numa sentida ausência da melhor terça parte deles, que se fora por obra
deles mesmos, deixando-os definitivamente incompletos. FIM